quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Psicólogos contribuem para um mundo sem regras, porque acham tudo normal ?

Esse mito, ou essa idéia, é bastante complexa, e portanto merece mais atenção ao ser tratada. Primeiro precisamos entender algumas coisas.

Como determinar o que é normal?

O que é normal muda conforme o tempo:

A idéia de normal e anormal não é uma coisa estática. Ou seja, uma coisa normal não é sempre normal e uma coisa anormal não é sempre anormal.  Essa idéia vai mudando com o tempo. Basta olharmos nossa própria história e ver como os costumes mudam ao passar dos anos.

Alguns anos atrás os homens tinha sempre a premissa de cortejar as mulheres, ou seja, eles tomavam a iniciativa de tentar algo com elas. Haviam os namorinhos de portão, a relação quase sempre iniciava no namoro com vistas para o casamento. Para esse momento, seguiam-se alguns rituais como pedir a mão da moça em casamento para os pais, precisar provar que era um bom moço (de boa família e trabalhador), e o sexo apenas após o casamento era observado como uma virtude de ambos os pombinhos. Isso era o comportamento normal.

Hoje em dia, qualquer pessoa nos anos 1980 e posteriores, sabe que existem novos modos de relacionamento (ficar, por exemplo), modelos diferentes de compromisso, e as moças não dependem tanto mais da aprovação dos pais para casarem-se, de modo que muitos daqueles rituais não existem mais. O sexo é menos um tabu e mais um comportamento visto como normal entre não casados, com exceções de algumas alas que conservam o tradicionalismo por motivos religiosos.  Portanto, ao longo do tempo, a sociedade foi mudando, e o que era comportamento normal à alguns anos atrás hoje é visto como resquício de romantismo de décadas passadas.

As mulheres no mercado de trabalho são outro excelente exemplo. Antes as moças eram educadas para serem donas de casa, saberem cozinhar e serem modelos de esposas submissas que deveriam ser ajudantes de seus maridos quando estes chegavam cansados do trabalho, e o sexo do casal era prioritariamente para render prazer ao homem, cabendo às mulheres a função de servidão neste quesito. Uma mulher com estas características era considerada normal, para não dizer exemplar. As mulheres que fugiam disso, rebeldes.

Hoje as vemos conquistando o mercado de trabalho, cada vez mais consolidadas. Existem profissões em que elas são maioria, e sabemos cientificamente de algumas qualidades tipicamente femininas que as fazem serem melhores que qualquer homem em algumas funções, como as que exigem motricidade fina, por exemplo, em linhas de produção com peças pequenas que exigem mais habilidade e menos força, ou em áreas que exigem da pessoa fazer várias coisas ao mesmo tempo, como telefonistas e secretárias, bem como administradoras. Além da habilidade de lidarem com jornada dupla, como o trabalho e o cuidado com os filhos.

Com o advento da pílula anticoncepcional, as mulheres passaram na prática e simbologicamente a ter mais controle sobre sua própria vida sexual, deixando de serem serventes dos homens. Agora elas não precisavam mais fazer sexo apenas para fins de procriação e podiam aproveitar a prática para seu próprio prazer também.

Portanto, a mulher de décadas atrás e a mulher atual seguem padrões diferentes, e anormal passa a ser essa mulher de antigamente, vista hoje como “amélia”, ou “dependente do marido”. Estamos observando um tempo de mudanças, em que pessoalmente acredito ser feliz e benéfica, pois equilibra a balança dos direitos entre seres humanos e derruba um pouco mais o machismo.
Portanto, como você pode ver, através de dois exemplos simples, conforme passa o tempo, a idéia de normal e anormal vai mudando junto.

O que é normal muda conforme o lugar e a cultura:

Não apenas o tempo, mas a geografia do lugar, o local, e a cultura tornam diferentes o que é normal. Observemos por exemplo as características típicas dos japoneses, de sempre dedicarem-se ao máximo no que fazem e o quanto se cobram pelos resultados. Nós, ocidentais, facilmente poderíamos vê-los como perfeccionistas, mas eles poderiam nos ver como descompromissados. É a diferença do olhar, do que é considerado normal. Mais próximo de nós, podemos ver a diferença dos habitantes das grandes cidades e dos habitantes do campo. Não é diferente? Ora, o habitante do campo tem em seu cotidiano atividades diferentes, necessidades diferentes, experiências e crenças em geral diferentes. 

Os índios, ou os nativos africanos, ou ainda os aborígenes australianos, todos possuem costumes diferentes que podem parecer bizarros aos nossos olhos. Se um deles nos visitassem em uma de nossas grandes cidades, poderíamos facilmente achá-los loucos, ou anormais. Mas onde eles vivem, em seu meio, nós é que somos anormais. Nossas roupas é que seriam curiosas para eles, nosso desapego pela natureza é que seria ofensiva para eles, e não o costume o de algumas tribos de índios de abandonar crianças com deficiências.

É a diferença dos seres humanos. E nunca funciona quando julgamos uma cultura diferente pelo olhar da nossa própria, isso tende a gerar sempre o preconceito. É uma premissa da Antropologia que deve ser assimilada pelos psicólogos que quiserem verdadeiramente estudar o comportamento humano.

O que é normal muda conforme as circunstâncias:

Pensemos agora num país que acaba de entrar em guerra na época da Segunda Guerra Mundial.  Antes os habitantes que podiam andar livremente nas ruas, precisam estar prontos a esconderem-se no subsolo e a lutar por sua nação. Alguém que ande nessa época despreocupadamente pelas ruas ou que não demonstre apreensão pela situação provavelmente seria taxado de louco, anormal.

Ou pensemos na aterrorizante possibilidade de uma epidemia em larga escala de alguma doença que seja transmitida pelo contato físico.  Veríamos rapidamente pessoas lavando as mãos com uma frequência muito maior e evitando locais com muita gente. Qualquer pessoa que não conhecesse a circunstância estaria propenso a imaginar que as pessoas estão ficando obsessivas com a própria higiene. No entanto, a circunstância motivou tal comportamento.

Há casos, extremos como nos exemplos que citei, ou muito mais cotidianos, em que uma circunstância motiva a mudança de comportamento das pessoas e com isso a idéia de normal começa a variar também.

A violência urbana e a criminalidade, por exemplo, não nos dão um quê paranóico muito grande? Fechamo-nos em grades, com alarmes, alguns com carros blindados, e algumas pessoas chegam a evitar saírem de casa para compromissos sociais. Estamos ficando loucos, somos anormais? Não, somos produto de uma circunstância diferente, e se uma pessoa morar numa casa sem muros e cheia de vidro num bairro conhecidamente perigoso, não será ela que chamaremos de anormal?

Então, como se define o que é normal?

Com todas essas variações - e elas estão ligadas entre elas - não há um modo de definir o que é normal que seja satisfatório e justo. Ou se tentássemos, precisaríamos mudar nossa idéia a todo momento, e apenas tratar e oferecer nossos serviços a seres humanos minimamente parecidos conosco. Ou então, seríamos como grupos tradicionalistas que consideram o normal como imutável, e veríamos assustados as mudanças do mundo como sempre sendo coisas ruins, ou quem sabe sairíamos numa cruzada querendo mostrar como “nosso jeito de viver” é o certo e porque todos deveriam ser como nós. Isso não ajudaria a Psicologia em absolutamente nada, e nos tornaria julgadores conservacionistas, e não cientistas do comportamento humano.

Normalidade como força da maioria e como uma definição social

No entanto, a sociedade humana desde sempre teve uma definição do que é normal ou anormal. E como ela faz isso?

Na maioria daz vezes, quem define a normalidade é a maioria. Se num dado país a maioria da população considera um “jeito de ser” como normal, qualquer pessoa que saia desse jeito, automaticamente está no campo do anormal. E não funciona apenas com maioria numérica, ou seja, número de pessoas. Funciona também com grupos, que mesmo tendo menos pessoas, detém o poder de ditar as regras.

À alguns anos atrás, vimos a triste história do Apartheid, em que uma minoria branca oprimia a maioria negra na África do Sul, por considerá-los inferiores, portanto, fora da linha de normalidade em que eles próprios julgavam estar. Felizmente, isso acabou e hoje o país tenta se erguer como uma nação democrática, mas o exemplo pode ser visto em vários outros momentos históricos da humanidade.

A normalidade é definida socialmente. É uma construção da sociedade que muda, mas a cada momento em que alguém foge a essa construção, é taxado de anormal. Portanto, enquanto psicólogos, não acreditamos que tratar de normal e anormal nos ajude em algo, e portanto não usamos essas definições de forma científica.

Hoje em dia quase não se vê ninguém apontar um deficiente físico e chamá-lo de anormal. É com infelicidade que uso o “quase”, mas felizmente estamos aprendendo a mudar alguns conceitos e ver que a taxação de anormal fere as pessoas. Por vezes torna-se ainda mais nocivo que o próprio problema delas, como no caso do preconceito aos portadores de HIV.

Se estamos aprendendo isso, porque continuamos livremente chamando de anormais pessoas que possuem transtornos mentais ? Porque achamos que uma deficiência física merece nosso respeito e um problema mental não merece? Porque tantas pessoas morrem de vergonha de admitir que possuem algum problema de ordem psicológica mais do que teriam de admitir que possuem algum problema de ordem física?

Por essas contradições tristes que a humanidade ainda possui, precisamos mudar nossa atuação, e trabalhar com normal e anormal simplesmente não é eficiente para ajudar alguém.

Adaptação ao ambiente e circunstância:

A Psicologia funciona melhor quando trabalha com a questão da adaptação ao meio em que a pessoa vive. Quando falo de meio, falo da cultura em que ela está inserida, das atividades que ela exerce, e como ela lida com tudo isso que rodeia sua vida.

Vamos a um exemplo mais prático. Imagine que João que é um civil, e está vivendo num país que está em guerra, e de repente se veja a todo momento num tiroteio. Se ele tiver uma reação de pânico para manter sua própria vida, correr, tiver todos os sintomas de ansiedade, chorar, ou ficar paralisado em algum canto, ele está apenas tendo a reação que eu ou você teríamos, pois ele não tem treinamento para se defender de uma situação dessas e está querendo fugir do risco de morte.

Agora imagine José, que mora no terceiro andar de um prédio em um país estável que não está em guerra e sente-se aterrorizado toda vez que precisa pegar um elevador, a ponto de ter um ataque de pânico enquanto está dentro dele. Ora, um elevador não oferece a princípio um nível de risco para causar essa reação. Mas ele sente-se desse modo. A princípio estaríamos inclinados a dizer que se trata de um fóbico.

 No entanto, toda vez que José precisa sair de casa, ele tem a opção de descer pelas escadas e evitar a fonte de seu medo, o elevador. José conseguiu portanto adaptar-se à sua situação, ao seu meio, de modo que agora ele sempre utiliza as escadas e ter medo do elevador não causa prejuízos em sua vida a ponto de precisar de ajuda de um profissional, assim como utilizar as escadas não causa prejuízo a outras pessoas com quem convive ou divide o condomínio. É provável que José tenha uma fobia relacionada ao elevador sim, mas ele encontrou um modo de viver com isso satisfatoriamente. Portanto, está adaptado à vida que leva e ao seu meio, mesmo com sua provável fobia.

Agora imagine outra situação, em que José não mora no terceiro andar de um apartamento. Ele mora no trigésimo andar de seu apartamento, e trabalha num prédio cujo escritório fica no quinquagésimo andar. Ele teria que descer 30 níveis de escada todos os dias, e subir outros 50 apenas chegar no seu ambiente de trabalho. A partir do momento que isso se torna insuportável para José, causando prejuízos a sua vida, ele não está mais adaptado ao seu meio, e por isso ele passa a procurar ajuda profissional. Tem medo de precisar mudar-se para uma casa e perder seu emprego. Com isso, por causa de sua fobia, sua família toda precisaria ser realocada. Agora sim temos o quadro de alguém que precisa de ajuda, pois o problema afeta a ele e as pessoas próximas de modo que cause prejuízos.

Como você pode ver, sabemos que uma pessoa está adaptada ou desadaptada, quando problemas começam a surgir em sua vida de modo a lhe causar prejuízos e/ou a outras pessoas. Quando usamos os tratados de diagnóstico, como a CID-10 e o DSM-4, todos eles citam como critério para diagnosticar o fato de a pessoa precisar relatar que o problema lhe causa sofrimento e/ou causa sofrimento a outros.

É preciso ainda diferenciar a linha tênue entre sofrimento e incômodo. Em geral, diferenças causam incômodo, como no caso de pessoas que possuem opinião diferente da maioria. Se não tomarmos esse cuidado, podemos nos pegar tratando pessoas que por suas opiniões causam incômodos aos outros. Ou você nunca viu alguém ser chamado de louco ou mandado procurar um psicólogo simplesmente porque emitiu uma opinião divergente da maioria?

 A liberdade do ser humano deve ser tomada como algo sempre a ser respeitado pela Psicologia, e a constituição de nosso país garante a liberdade de opinião e igualdade de direitos entre os cidadãos, por mais que na prática não funcione sempre assim.

Portanto um casal homossexual que mostre afeto em público não é um caso a ser tratado, porque um casal heterossexual que fizesse a mesma coisa também não seria. No caso de fazerem sexo no meio da rua, tanto o casal hétero como o casal homossexual estaria entrando no crime de atentado ao pudor, e se isso for um a atitude recorrente, provavelmente ambos precisariam de ajuda. O fiel da balança não é a orientação sexual, e sim o comportamento e sua adaptação ao meio (nesse caso, o nível inapropriado de demonstração do afeto em público)

Óbvio que pelas crenças cristalizadas de nossa sociedade isso poderia provocar incômodos em quem assistisse a cena do simples afeto no caso do casal homossexual, mas gerar incômodo não é motivo pertinente para dizer que uma pessoa está desadaptada, e portanto, precise de ajuda.

Assim como fumantes. É claro que estão provocando malefícios ao seu organismo, mas se isso não causa prejuízo a outros (saber fumar sem tornar os outros como fumantes passivos, por exemplo), e o próprio indivíduo o faz porque gosta e conhece os riscos, o problema é inteiramente dele. No caso de um fumante pedir ajuda da Psicologia para deixar de fumar, aí sim, passará a ser problema nosso também e iremos tratá-lo no sentido de ajudá-lo a cumprir seu objetivo, pois o tabagismo trata-se de uma adicção, que pode ser tratada com ajuda dos métodos da Psicologia.

Se um homossexual pedir ajuda para lidar com os problemas de sua sexualidade, ou seja, sua orientação sexual lhe causa sofrimentos, iremos ajudar no sentido de fazê-lo se conhecer e aceitar-se ou conhecer-se como tal, amenizando o sofrimento, mas nunca iremos tratá-lo para deixar de ser homossexual, por mais que alguns psicólogos já tenham manchado nosso nome com tal atitude reprovável e ilícita anteriormente, pois isso é completamente vedado pelas leis de nossos Conselhos. Assim como trataríamos um heterossexual que peça ajuda para lidar com problemas em sua sexualidade, da mesma forma. Mais uma vez, orientação sexual não é o fiel da balança para a Psicologia.

Portanto respondendo àquela pergunta do início, nós não achamos tudo normal, simplesmente porque não trabalhamos com essa idéia.

E quanto menos utilizarmos esse tipo de classificação, melhor será para apagar essa imagem errônea que o grande público pode ter de nós. De forma alguma contribuímos para um mundo sem regras, já que o que fazemos é exatamente respeitar a liberdade individual e tratar cada pessoa como única, ajudando a superar seus problemas, sempre dentro das leis estabelecidas.

Casos complicados, nem tanto:


Há casos mais complicados que em geral são usados como argumento pelos defensores dessa idéia. Como por exemplo nos perguntar se consideramos os pedófilos pessoas normais. Ora, se uma pessoa possuir predileção sexual por menores de idade e sabendo que é crime e prejudicial dar vazão a esse desejo, conseguir suprimí-lo, é possível que sequer um dia saibamos que essa possui possui essa preferência.

Mas se suprimir esse desejo lhe causa sofrimento, ele precisa de ajuda e estará desadaptado. Se, pior ainda, cometer o ato de pedofilia por causa dessa predileção, causará prejuízos à vítima e a si mesmo, precisando ainda mais ser ajudado, e estando completamente desadaptado ao meio, pois terá cometido um ato que atenta contra a lei e o direito das crianças e adolescentes, além do que esse caso não ficaria apenas nos domínios da Psicologia ou Psiquiatria, mas seria também de ordem criminal.

O que buscamos, portanto, é o equilíbrio. Para podermos ajudar as pessoas que precisam ser ajudadas, respeitando sua liberdade e, ao contrário do que alguns possam pensar, contribuir para um mundo melhor. Cada caso é pensado individualmente, e não parte do achismo. Parte de nossa formação e da orientação de nosso código de ética.

A moralidade não cabe à ciência. Definir certo e errado é como tentar definir normal e anormal, ou bom e mau. A famoso raciocínio polarizado, ou seja, ou é bom ou é mau, ou é normal ou é anormal, é por demais simplista para uma ciência humana. Muitas outras coisas precisam ser analisadas e consideradas.

À Psicologia cabe usar seus conhecimentos para ajudar cada pessoa como ela é, com todas as suas diferenças e circustâncias - e variações que existem por causa disso-  tentando ajudá-las a ter uma vida com qualidade, adaptada ao meio em que está inserida, dentro de nossas leis, mesmo que com todas as suas particularidades preservadas.

Se gostamos do que fazemos e temos carinho pela Psicologia, devemos tratá-la como tal, e isso inclui esclarecer certas imagens equivocadas que se formam, por vezes devido a nossa própria culpa. A Psicologia não deve ficar numa redoma de vidro ou taxada de arte, alheia às pessoas. Não somos artistas, somos cientistas e profissionais que devemos informar o grande público e usar o que temos pelo bem da sociedade.



Andre Borghi

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